Hilário Dick
Fui devagarzinho para a porta do paraíso. Você sabe onde é o paraíso, né. Pois fui. Haviam-me dito que no céu não se pode fazer barulho para os arcanjos não desafinarem no gregoriano deles. É que Deus não gosta de desafinos... E fui, bem de manso. Espiei por uma janela, por duas e nada. Tudo era grandão...
Azul. As janelas pintadas de branco. Ficava bonito. Lá longe aqueles cantos lindos, em milhares de vozes. Será que Gisley estaria lá, ensaiando algum mantra? Olhei firme, mas nada. E fui adiante. Lá nos fundos havia gritaria. De manso, ainda, fui indo. Não pode ser... Era um jogo de futebol dos mártires contra os não mártires... Os não mártires estavam ganhando 5 x 2 e era aquela festa.
Chegando mais perto, vi. Sim, o Gisley, todo suado, estava lá e ele nem estava aí com possíveis visitas. Vi ele tomando água. Todos o parabenizavam porque tinha feito um golaço. E ele, nada de me ver... Aí pulei a janela e fui.
- Menino! Você por aqui?
E Gisley me reconheceu e com o jeito de adolescente senvergonha veio ao meu encontro.
- Seu véio metido, até aqui você não me deixa em paz?
Meio chateado, fui direto:
- Meu irmão, o que você foi aprontar com os nossos corações? Tanta choradeira lá na terra dos Morrinhos, na terra dos Planaltos, na terra dos Vales, na terra das Autoridades e você aqui, jogando futebol...
Ele, contudo, levou-me pro lado e perguntou:
- Viu o gol que fiz?
- Sim, sim
- É que sou novo e eles deram uma chance para mim... Mas o que veio fazer aqui? Aliás, me conte... Disseram-me aqui que fui empurrado para dentro daqui e que eu gritava que queria viver mais na terra, que não era minha hora, diziam que estava sujo mas me arrumaram para eu voltar a ser eu. O que aconteceu mesmo?
Olhei para ele com aquele mesmo jeito...
- Então você não sabe?
- É que minha entrada aqui foi tão rápida que nem me lembro. Só me lembro do rapaz puxando arma. Depois... nada mais. Sei que estou aqui. Sei que me rodeou, aqui, um monte de juventude me aclamando dizendo que pouca gente, de minha “classe”, entra aqui como eu. Fiquei feliz, mas com vontade de mandar todo este mundo pastar. Mas, meu mano véio, fique aqui, vou tomar um banho e volto. Vai ser rápido.
Fiquei esperando não sei quanto. É que no paraíso não tem relógio. O paraíso fica fora do tempo.
- Pronto! Então você veio atrás de mim...
- Sim. É que o pessoal que você deixou está muito por baixo. Rezando, mas xingando muito. Foi um ir embora tão inesperado.. .
Gisley, com sorriso de menino que apronta, olhou pra mim e disse: “Apesar de tudo, falta fé. A fé remove montanhas. Também a montanha da distância”. E continuou: “Vem cá, como está a Edina? O Wagner... Me lembro que fui num show com ele e, depois, nós rimos muito. E a Carmem? E a Luciene? A Raquel está bem? E me perguntou de milhares de pessoas. Sacudia a cabeça, de vez em quando.
- Compreendo. É difícil explicar estas coisas. As coisas são mais simples do que imaginamos. Mas é preciso dizer de novo que somos feitos para viver, não para morrer. De repente estou aqui. Esperando outros chegarem para prosseguirmos nossas risadas.
Eu ficava ouvindo ele falar. Falava do jeito dele que não se imitar, mas falava. De vez em quando parava e citava outros milhares de nomes. E eu dizia o que sabia. O resto ele imaginava.
- Que é que você tá pensando? me perguntou de súbito.
- Nada... Um nada que é tudo. Sei que é bom estar aqui, vê-lo com a beleza que já era.
- Vamos visitar uns amigos?
- São muitos, não é?
- Sim, mas vou escolher alguns. Depois você fala para essa gente tudo que viu.
Pegou-me pela mão e, num instante, num piscar de olho, vi alguém chegando.
- É Dom José Mauro, né?
- Sim. Ele é o nosso bispo aqui. No meio das ocupações, a gente se encontra sempre.
- Disseram-me que não sobrou nada dele e eis que o vejo com um coração mais lindo do que nunca...
- De vez em quando a gente se reúne e recorda. Recorda sempre, eternamente o mesmo mas eternamente de novo.
- Não quero falar com ele. Só contemplar.
- Tá bom. Mas nem um uai?
- Não. É melhor assim. É que quando os outros virem para cá, tenham infinitas novidades.
- Então venha...
E num outro piscar de olho, Gisley me levou para uma sala. A sala das diversões. Sabe quem vi, com seu sorriso de ironia?
- Você conhecia ele, né? Pois o Albano não perdeu o gosto de jogar canastra. O bom é que todos ganham e todos perdem no meio das recordações do que gostariam de ter feito e não deu porque, quase como eu, disseram para ele que já bastava. Você vai saúdá-lo?
- Não. Basta ver e convencer-me que vida é vida. Mas... Vocês tem reuniões aqui?
- Sim, mas só de encher a alma sempre mais cheia. Infinitamente cheia.
- É. Acho que compreendo uns milímetros de uma felicidade que não morre.
- Vamos adiante?
- Sim.
Noutro piscar de olhos entrei numa sala cheia de fumaça. Lá no fundo, com um sorriso lindo de eternidade, eu vi.
- Sim. É o Floris... Sempre recorda sempre de forma nova tudo que tentou e, em meio a uns goles de vinho, também se lembra de todos. Chatos e bons, mas que um dia vão estar aí também. Vai saudar?
- Não. Para ser bom não se precisa tocar... Basta saber que a vida reservou novidades que não morrem.
- Quero te mostrar outra coisa... Vem. Aqui as novidades não morrem.
E ele me levou para um lugar grande, enorme... Milhões de jovens, também bandeiras da Pastoral da Juventude, discutindo como poderia ajudar para fazer que a violência contra a juventude seja banida da face das terras. Fiquei embasbacado. Quando a multidão viu o Gisley, foi um coro só:
- Bem-vindo!
E Gisley só abanou prometendo que, noutra hora, estaria com eles, mas deixando a entender que tinha sugestões.
- Estou de visita! disse ele.
Escondi-me atrás de uma nuvem, mas a nuvem era de todos. Deu vontade de chorar de alegria, mas no céu não se chora mais. E Gisley me disse:
- Os arcanjos me sussurraram que sua visita está terminando. Vamos?
Olhei para o Gisley. Ele plantou na minha mão um pé enorme de esperança e disse:
- Diga a todos que a vida é para sempre. Diga a eles que partam para a luta. Diga a eles que a vida é mais bonita quando a gente é capaz de dar a vida por uma causa. Sabe, entrei nesta um pouco de gaiato, mas entrei. Que fiquem todos bem, certo? Estou à espera...
Quando ia mais adiante, o Gisley me chamou de novo:
- Hilário, você viu que o P. Albano começou a Casa da Juventude de Goiânia e esteve, também, no começo do Instituto de Pastoral de Juventude de Porto Alegre; o P. Floris esteve no amadurecimento daquilo que entendemos como Processo de Formação Integral.
Nunca me esqueço daquele gráfico (e ficou fazendo o gesto dos círculos se encontrando. ..); D. José Mauro esteve na elaboração e aprovação primeira do documento sobre a evangelização da juventude. Sabe o que eu gostaria? Gostaria de ser um dos patronos da Campanha contra a violência e o extermínio da juventude. Acho que não é vaidade, né?
Não deu tempo de reagir porque as nuvens me levaram.
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[1] Precisamos assimilar o assassinato do Padre Gisley de diferentes formas. Precisamos aprender a rir, no meio da dor. É um aspecto da resiliência.
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